sexta-feira, 27 de maio de 2011

Peru III - De Cajamarca a Huaraz, Cordilheira branca

Peru III - De Cajamarca a Huaraz, Cordilheira branca

O serviço de lavandaria do hostal, fez retardar a partida para as dez da manhã, já o sol estendias os raios quentes pelo vale. O mais certo era não chegar a Cajabamba, como pretendido, mas ficar pelo caminho, provavelmente em San Marcos, o único povoado intermédio com alguma dimensão.
A estrada N3 começa por nos conduzir ao longo do vale, numa suave descida rumo a sul. Mas ao fim de escassas dezenas de quilómetros, muda um pouco de rumo e de fisionomia, atravessando-se as incontornáveis cordilheiras no caminho, ainda que não pareçam sequer primas das que ficaram para trás nos últimos dias. E com as colinas e a montanha, vem o solo árido, a paisagem agreste, a agricultura pobre, de pequenas searas raquíticas e pastoreio de ovelhas. Os burros voltam a ser o melhor amigo do homem e os porcos pastam com(o) as ovelhas, nas bermas da estrada. As casas são dispersas, de terra e com a terra se (con)fundindo, pelas encostas da serrania. Pelo menos a estrada continua em asfalto, enrodilhando-se suavemente pela orla dos montes, até transpor mais um cume – prolonga a distância mas suaviza as pernas.
San Marcos avista-se ao longe, no fundo do vale, no fim da compensatória descida. Mesmo à entrada da povoação, dois jovens, já entradotes na idade e na cerveja, fazem grande algazarra para pararmos e tomarmos uma cerveja com eles. O Luís ia uns metros adiante e tardou um pouco a reagir, mas eu parei a tempo e acedemos em tomar uns tragos de cerveja. Um estava particularmente embriagado e não se cansava de perguntar o que achávamos das peruanas, olhando com brejeirice para as duas “chicas” que estavam sob a ombreira da porta. Claro que por eles não arredaríamos dali sem esgotar o stock de cerveja, que ia rodando de mão em mão, até ser posta de lado e surgir a seguinte. Mas lá os convencemos que o nosso destino era outro e retomámos a marcha em busca de um poiso – apesar de ainda ser bastante cedo, Cajabamba era inalcançável hoje e não havia povoações intermédias.
Em San Marcos apenas encontrámos dois pontos de interesse: uma boa frutaria onde enchemos os sacos, por tuta-e-meia, como sempre; e uma pastelaria com excelentes sumos naturais e bolos – e como a vida de viajante é amarga, nunca recusamos abundantes bolos, gelatinas, pudins e toda a espécie de doçuras que temperem o palato, sempre que possível acompanhados por deliciosos sumos de toda a espécie.

Vida quotidiana…




Alvíssaras para quem adivinhar o que vem a seguir… ok, era demasiado fácil. Sim, se San Marcos era num buraco enfiado na montanha, deixá-lo é mais do mesmo: subir toda a manhã. É monótono!? Olhem para o retrovisor da vida e tirem as vossas conclusões; É duro? Só para os moles, que não é o caso; que tem de belo? de interessante? Nunca se sabe e depende dos olhares de cada um… depois de subir e descer, espezinhar a montanha, sentir o salgado suor na boca e a adrenalina das curvas nas descidas, fuzilar o horizonte com o olhar, beber a verdura e a secura da paisagem, sentir a exclusividade de cada momento, atolar os pés num rio caudaloso, onde um velhote lavava carinhosamente – assim me pareceu – a sua pasteleira, fotografar um porco preguiçoso que dormitava à sombra de uma choupana, certamente construída a seu mando, deparo-me com um magote de jovens estudantes, todos em bicicleta. Bons dias, perguntas e respostas da praxe, sorrisos e exclamações, e estou a pedalar escoltado por sete miúdos. Devem faltar uns dez quilómetros para Cajabamba e parece que terei a sua companhia. Andam na casa dos quinze anos, estudam num colégio técnico, começam as aulas às sete da manhã e terminam à uma. Um dos miúdos, por sinal o único gorducho, encara-me e diz-me que tem fome – assim, a seco, olhos nos olhos. Ainda lhe mando uma piada parva, de que me arrependo antes de terminar. Pergunto o que comeu hoje e responde “um pão e um copo de quínua”, cerca das seis da manhã, antes de ir para a escola. Insisto se não levou lanche para comer a meio da manhã, pelo menos uma banana – que são ao preço da chuva, aqui – e parece que estou a dizer uma enormidade: ninguém leva essa coisa de lanche. Faço “contas de cabeça” e decido que vou repartir com eles as bananas que tenho – talvez não se sintam provocados por dar meia banana a cada um... Querem que visite uma qualquer lagoa “turística”, que fica mesmo junto à estrada, e faço-lhes a vontade – talvez seja o sítio adequado para o lanche… A lagoa fica no fim de um declive mais acentuado e o “gorducho”, transpirando e arquejante, fica para trás. Vista de cima, a lagoa parece um donut, com uns perus, de rabo em leque, passeando no centro relvado, rodeado pelo anel de águas com aparência pouco límpida.

Lanche…

Abri o alforge e saltou-me à mão a metade restante de um bolo, mais pequeno que um queijo da serra, que comprara em Cajamarca e passei-o ao miúdo que estava mais perto, para que distribuísse pelos outros cinco. Tirei as quatro bananas e dei-lhe três – metade para cada um – e fiquei a observar as reacções deles… o bolo quase só dava uma migalha a cada, mas todos fizeram um ar de satisfação ao saborearem a escassa porção que lhes coube. E em determinado momento, estávamos todos em semicírculo em redor da lagoa, agarrados à bicicleta e com meia banana na mão. Foi então que chegou o gorducho, arquejante e transpirado, com a bicicleta pela mão. Dei-lhe metade da minha banana e constatei que não houve milagre que multiplicasse nem a fruta nem o bolo, pelo que cada um se contentou com a porção irrisória que lhe coube… e ninguém pareceu ficar ofendido ou desencantado pelo miserável repasto. Na verdade eu deveria se o único constrangido…
Apesar de meia-tarde, ficámos por Cajabamba. Na verdade, a zona é muito remota e quase todos os povoados “grandes”, onde se pode contar com algum tipo de hospedagem e comida, ficam em vales profundos, que podem levar várias horas a deixar para trás. Por isso, temos sempre algum receio em nos aventurarmos aos próximos 60 ou 70 kms, a meio da tarde, não vá a noite – ou a chuva – apanhar-nos, estafados, a meio de uma subida interminável, maior e mais longa que o mapa fazia prever… e, a meio da tarde, caiu uma tromba d’água, daquelas que fazem “fumo” na estrada e desaparecer os próprios passeios!

Museu ao ar livre…



A caminho de Huamachuco, a estrada trouxe uma novidade absoluta: as mulheres, em vez de andarem de fuso e velo de lã na mão, tecem longas e coloridas peças de tecido – ou faixas decorativas – no processo mais artesanal que poderia imaginar…
Depois de deixar para trás a turística lagoa de Sausacocha, com a maior densidade de restaurantes que vi por estas latitudes, Huamachuco há-de despontar por trás de um qualquer dos cerros que preenchem todo o horizonte. Ao longo dos últimos quilómetros de estrada, de novo terrivelmente dura, pelo piso arenoso e o declive, surgem pequenas “explorações” de pedra, saibro e afins. Homens, jovens e, por vezes, crianças, cavam a montanha a picareta, “rapando” escassos “punhados” de inertes que vão amontoando em pequenos montículos, junto à estrada, para venda. Não imagino quantos dias necessitarão para conseguir “amealhar” um metro cúbico, nem quanto receberão por ele. Mas as suas caras, corpos e olhares, não deixam dúvidas: recebem fome e miséria extremas e a vida esvai-se-lhes, sem retorno, de cada vez que erguem a picareta ao céu e a lançam sobre a pedra dura, numa luta inumana…

Ruínas de Marcahuamachuco, talvez as maiores de toda a América…



Markahuamachuco são as ruínas de uma cidade pré-inca, situadas a uma dezena de quilómetros de Huamachuco, no topo de um monte. No hotel dizem-nos que há “carros” junto à ponte, que nos podem levar lá. Mas fazemos sinal a um jovem que passa de moto-táxi e indagamos sobre a possibilidade de nos leva e esperar que visitemos o sítio, e respectivo preço. Pensa um pouco, diz que cobraria 30 soles, pois é longe e sempre a subir. Fechamos negócio, subimos para a moto-táxi e disparamos à aventura. Antes de deixar a cidade, o jovem motorista pára numa oficina e regressa com um pneu suplente; depois passa na bomba de gasolina e atesta o depósito. Finalmente estamos “listos” para deixar a cidade e trepar a Markahuamachuco. Primeiro por estrada de asfalto, ainda que com tantos buracos e pedras espalhadas pelo alcatrão, que mais parecia ter sido bombardeada. Depois entrámos na verdadeira estrada de cascalho, pedra solta e terra. Sempre a subir e com três adultos a bordo, a mota gemia, tremia, agitava-se ruidosamente quando o taxista reduzia de segunda para primeira e parecia lamentar-se quando fazia o inverso. De pedra em pedra, aos saltos; de segunda para primeira e primeira para segunda, aos urros; da esquerda para a direita, aos Ss, procurando evitar os calhaus maiores, lá conseguimos chegar ao destino – embora a última centena de metros tenha sido percorrida por nós a pé, pois nem em primeira a pobre coitada da moto-taxi conseguia transpor a subida.
Markahuamachuco é um enorme conjunto habitacional pré-inca (400 a 1000 d.c), que se estende longitudinalmente pela “crista” de um monte, ao longo de cinco quilómetros de cumprimento por cerca de seiscentos metros de largo. O estado da maioria das ruínas, é ruinoso, as respostas sobre o local, escasseiam e a recuperação, manutenção e estudo do espaço, “iniciaram-se há escassos meses”. Mas, ainda assim, é evidente a imponência da cidade, com muros de pedra “altíssimos”, uma praça de enorme dimensão e um castelo, entre outras construções. E a localização é, mais uma vez, impar, com uma vista dominante em 360º…

Esgaravatando a vida a golpes de picareta

Pouco depois de deixar Huamachuco, a chuva alia-se à montanha e a progressão torna-se um pouco mais lenta e sofrida. As escassas habitações vão ficando para trás e, chegado ao topo da serra, apenas alguns rebanhos de alpacas parecem resistir ao duro clima do extenso planalto, mais alto do que plano. Um ou outro casebre, de lata, terra e bocados “do que calha”, ergue-se, isolado, no vazio da montanha. Por vezes, nas imediações erguem-se robustos muros de pedra, formando currais onde guardam as alpacas. Não há vizinhos, não há electricidade, não chega a haver aldeia ou mercearia, não há campos de cultivo, apenas um casebre onde se aloja uma família de pastores, de faces que não se percebe se são negras ou rosadas, lábios roxos ou negros, cabelos negros, da cor dos olhos, das mãos e talvez do coração ou do futuro.


Convívio no Altiplano

Mas a riqueza do planalto parece ser as minas. “A maior mina de ouro do mundo”, garantem dois trabalhadores solitários que marcam os quilómetros da estrada, e com quem partilhamos as tangerinas e uns pãezinhos secos, não dista muito de Quiruvilca. E pouco depois da mesma Quiruvilca, em Shorey, outra enorme mina de ouro, prata e não sei que mais, domina a paisagem. Passam três carrinhas de alta segurança, com a suspensão bem baixa…devem levar uma boa maquia!

Quiruvilca…

Mesmo na encosta em frente a Quiruvilca, outra mina de “metais” parece ser a única fonte de emprego da “aldeia”. Com tanta riqueza em redor, a brotar do subsolo, não se compreende a miséria deste povoado, de longe o mais horrendo, sombrio, degradado, caótico com que me deparei ao longo destes meses de viagem – ou talvez seja o contrário, talvez seja a miséria e degradação das Quiruvilcas que alimenta de ouro, prata e diamantes as avenidas douradas de Nova York, Paris, Londres... As ruas são becos sombrios, sujos, estreitos e labirínticos. As casas são barracas sujas, inacabadas, com cobertura de lata ou colmo. Os cheiros são uma mescla explosiva de detritos, comida, urina… De onde quer que se observe Quiruvilca – de cima, da estrada que vem da montanha, ou de dentro, das ruelas caóticas – vê-se um grande bairro de lata, do qual apetece fugir. Mas de bicicleta não se vai longe na fuga, e nas imediações não há qualquer outra “promessa” de alojamento…
A estrada segue para Trujillo, para a tentadora costa, plana, solarenga e turística, mas a nossa rota exclui essas facilidades. Na nossa rota estão os Andes, sem olhar a altitudes, declives, piso ou temperatura. Assim sendo, viramos costas à estrada – bem maltratada, diga-se de passagem, há umas boas dezenas de quilómetros – e inflectimos para sul, em direcção à Cordillera Blanca e a Huaraz, a capital de Ancash. Está longe – nem imaginamos quanto – mas é esse o próximo povoado de “grande dimensão” que nos espera.

Altiplano frio e molhado, no silêncio da manhã

Gosto de chamar altiplano à vastidão que nos envolve, pois é uma região de vistas intermináveis, situada bem acima dos três mil metros, com cordilheiras ainda mais elevadas no horizonte, para onde quer que olhemos, mas na verdade não tem muito de plano, sucedendo-se as subidas e descidas.




No Altiplano não há vizinhos, nem aldeias, nem luz ou água, nem mercearia, café ou restaurante…no Altiplano Homem e Natureza fundem-se e confundem-se, hoje como antes do Tempo

Tudo o que o olhar alcança é de grande rudeza, inóspito e agressivo…a vegetação é parca e rasteira, com aspecto tisnado; de árvores ou arbustos, nem sombra; apenas rochedos e pedregulhos se erguem acima dos escassos tufos de erva. Ainda assim, de quando em quando aparece um conjunto de casebres e currais no planalto. E, não longe, um rebanho de alpacas ou ovelhas ratam, com pressa, o que encontram.


Nilson, homem, seis anos, pastor de profissão, esculpido nos Andes

Numa curva do caminho, o Nilson, que garante ter seis anos e não ir à escola, conduz o rebanho de trinta ovelhas. Diz-me que vive “naquela casita”, que guarda as ovelhas todos os dias, que não tem frio nem fome…as calças de ganga com bonecos, parecem pertencer realmente a um menino de seis anos, mas o olhar duro, a cara tisnada, as botas de borracha, as mãos duras, não são de menino, são de frio, chuva, terra, rocha. São de abandono e trabalho. São dos implacáveis e temíveis Andes… E quando lhe pergunto se posso tomar uma foto, acena que sim, mas quando aponto a objectiva, ergue as mãos à altura da cara, cerra-as e estica os indicadores. Pergunto-lhe porque o faz e responde apenas “porque sim”… Tiro a foto sem alma. Aquele gesto dos indicadores espetados, rasga-me levemente o peito. Parece estar a proteger-se, esconder-se, mas eu não quero atacá-lo, apenas quero guardar o olhar de um miúdo de seis anos, guardador de ovelhas, não de sonhos. E enquanto me afasto com o olhar e o gesto do Nilson no olhar, vem-me à cabeça um exercício macabro: se de repente trocassem os meninos de seis anos de Portugal, Espanha, França e demais países “ocidentais”, com os Nilsons do Peru, da Bolívia, Brazil e demais países não “ocidentais”. Durante um mês, um só mês! Quantos “ocidentais” sobreviveriam!? e se estendêssemos o exercício aos mais novos e mais velhos, pais incluídos!!? Se os “não ocidentais” deste mundo tivessem a menor percepção do que está para além do seu “planalto”, da sua fome, do seu frio, da sua miséria, “ocidente” e “oriente” tinham de endireitar os pontos cardeais, nem que fosse a ferro e fogo… abano vigorosamente a cabeça, procuro concentrar-me na paisagem, limpar o Nilson do olhar, esquecer porque tenho dificuldade em dizer aos Nilsons que só a bicicleta em que passeio custou 4 000 soles – por cá, uma custa 100 soles e orgulham-se os poucos que as têm…




Atingido o cume do Altiplano, estende-se aos meus pés uma paisagem nova, onde a aridez cinzenta dos pedregulhos, que parecem castelos, se intercala com parcelas de raquíticas sementeiras em tons de verde. Mas ao longo da descida para Santiago de Chuco, sucedem-se campos de batatas, milho, favas e cereais. É impressionante a vincada diversidade de paisagens, de modos de vida, de clima, que um só dia oferece ao olhar e ao corpo…

Ops!! Espera lá mais umas décadas, pois ainda tenho muitas bicicletas para romper

Apesar de Santiago de Chuco ser um povoado grande e aprazível, com um autêntico desfile de homens e rapazes cordialmente bombardeando-nos com perguntas, enquanto remendava o segundo furo do dia, o nosso destino era Cachicadan, uma aldeia enterrada na encosta, do outro lado do rio Chuquicara, conhecida pelas “termales”. Como os dias são duros e o corpo anda sempre bem castigado, não dispensamos o “luxo” das “termales”, sempre que estejam ao “alcance”, mesmo que tenhamos de descer e subir íngremes encostas, como acontece para atingir Cachicadan… Pior é quando as contas saem furadas, pois aqui as termales resumem-se a “um tanque” no quarto, ainda por cima com ar pouco higiénico. Para compensar, decidimos beber uma garrafa de vinho ao jantar, luxo de que há muito perdi a memória. Aceitámos a recomendação da dona do “restaurante” como sendo um vinho seco muito bom e, quando lhe vi a cor no copo “tipo champanhe”, percebi de imediato que era vinho doce, uma jeropiga… apesar da imprópria combinação, como diria o meu avô, nunca o doce me amargou! e a garrafa lá marchou.
Quando escolhemos os Andes como destino e a estrada N3 como rota, estava longe de imaginar quão remoto seria o trajecto, quão agressiva seria a estrada, quão acentuadas e frequentes seriam os declives, quão modestos seriam os alojamentos e restaurantes. Claro que esperava paisagens grandiosas e dificuldades tremendas, pobreza chocante e rudeza contínua. Mas os Andes são inimagináveis, trespassam-nos os olhos, o coração e os sentidos. Anulam tudo o que transportamos, todos os conceitos e preconceitos, impondo uma nova ordem, uma nova escala…

Descida para Angasmarca

Na descida para Angasmarca, uma miúda de uns dezasseis anos surge na berma da estrada pedindo “medicinas” ao Luís. A avó tem dores e ela parece não saber o que fazer. O Luís dá-lhe uns Ben-urons e recomenda-lhe que vá ao médico caso não passe – como se ir ao médico fosse algo simples e comum nos Andes infinitos.
Em Angasmarca, enquanto parávamos para almoçar, um comerciante de quinquilharias em plástico dirigiu-se-nos amavelmente. Queria informações sobre os sítios de onde vínhamos: como eram as estradas, a dimensão e frequência dos povoados, feiras e vendedores. É vendedor ambulante e nunca esteve a norte de Angasmarca, mas pensa alargar o raio de acção e procura informação sobre onde ir… e achei piada por serem uns estrangeiros “viandantes” a prestarem informações a um peruano sobre o seu próprio país.

Angasmarca de chapéu alto


Juan de fisga em riste


Família a caminho da festa


O peso da idade

Já entardecia e as nuvens iam-se adensando sobre as nossas cabeças, escurecendo o céu e a terra. Mollepata era o destino desejado para pernoitar, embora não tivéssemos certezas acerca daquele pequeno ponto no mapa. Transposto mais um cume, deparo-me com o vale mais profundo e acentuado de que tenho memória – ou pelo menos foi essa a percepção com que fiquei. Um pouco abaixo, um pequeno aglomerado de casas, de telhados vermelhos na encosta verdejante, deve ser Mollepata. À distância, do outro lado do vale, vê-se evoluir na encosta íngreme uma sequência incontável de Ss, que se perdem na última linha do caminho, à direita. Do lado esquerdo, por outro vale, vislumbra-se um pequeno risco que sobe com mais suavidade. Sem ligar aos pontos cardeais nem à lógica geográfica, digo ao Luís que será aquela a nossa rota, pois a outra nem sequer parece transponível… deve ser apenas um “carreiro de cabras”, penso/desejo.
Quando chego ao centro do pequeno povoado de Mollepata, debaixo de grossas, ainda que ralas, gotas de chuva, ouço o rufar dos tambores e os acordes roucos de uns instrumentos de sopro. Paro na praça, junto à igreja, resguardando-me da chuva debaixo dos beirais das casas baixas e escuto a banda aproximar-se. Daí a pouco surge no largo uma pequena procissão, encabeçada por um burro transportando a estátua de Jesus de Nazaré, amparado por dois homens – um de cada lado do burro. Atrás segue a pequena banda e o parco cortejo, essencialmente de idosos e crianças. Também eles, para evitarem a chuva, marcham sobre o passeio, arrimados às paredes das casas. Viram à esquerda e vejo a procissão subir as escadas que conduzem ao átrio da igreja, sempre com o burro na dianteira. Viro-me para o Luís e digo: só falta entrarem na igreja com o burro. E a marcha, lenta mas inexorável, aproxima-se da porta da igreja e não se detém, desaparecendo todos no seu interior. Apesar da chuva, salto com a máquina fotográfica para a porta da igreja – tarde de mais, pois já o burro e o arreateiro estão de saída.

Arsécio na igreja

Fico à entrada da igreja, meio hesitante, de máquina em punho, calções e impermeável, mais parecendo um extra-terrestre, quando o Arsécio, decano septuagenário que parece liderar o grupo e dominar as circunstâncias, se me dirige de mão estendida e olhar sorridente, convidando-me a entrar e tirar fotografias. Ainda um bocado desajeitado, encosto-me a um pilar e tiro uma foto, mas daí a momentos gera-se uma amena cavaqueira em plena igreja, comigo e o Luís a sermos o centro das atenções, da curiosidade e das perguntas de todo o grupo, animado pelas piadas e boa disposição do Arcécio, que ali mesmo encomendou o nosso jantar à senhora Esperança e nos indicou a senhora Paz Consuelo, a proprietária da única hospedaje existente.

Arsécio e Cevero no miradouro de Mollepata

Mas o Arsécio e o seu amigo Cevero Sanchez não concluíram o amistoso encontro sem me levarem ao miradouro da aldeia. E conduziram-me pela pequena vereda até ficar frente a frente com a imponente encosta do outro lado do vale, a mesma que tinha visto há pouco tempo, do cimo do monte, com o novelo de curvas e segmentos de recta estendidos encosta acima. E por via das dúvidas e desilusões, logo se encarregaram de me esclarecer que era por ali mesmo que eu amanhã teria de sair, em direcção a Pallasca, visível bem no topo da montanha em frente.
Depois de me pedirem para os fotografar frente à majestosa paisagem, orgulhosos da sua aldeia e das suas gentes, o velho Arsécio quase chorou quando lhe pedi a morada e prometi enviar por correio as fotografias. Já o Cevero me pediu para as pôr na Internet, de modo a poder mandar os seus amigos e familiares vê-las…
De regresso à aldeia, dirigimo-nos a casa da senhora Paz Consuelo. De 72 anos, ex-professora da aldeia, reformada, viúva de marido japonês, que conheceu em Lima enquanto estudante, mãe orgulhosa de sete filhos – todos formados e espalhados pelo país e pelo Japão – ocupa-se, com gosto e energia, da enorme casa onde acolhe hospedes como se foram família. Depois de nos instalarmos no modesto quarto, convidou-nos a tomar chá no espaço íntimo da casa. E à mesa estavam mais duas jovens enfermeiras e uma professora idosa, que também se encontram alojadas na casa/hospedaje de Paz Consuelo. A serenidade terna, a religiosidade comprometida, a firmeza elegante, a simplicidade orgulhosa de Paz Consuelo, preenchem o espaço e tornam o lanche um momento quase espiritual…
A senhora Esperança não cumpriu à risca as recomendações do Arsécio para o nosso jantar, mas serviu-nos do seu jantar, na sua mesa, com toda a boa vontade e simpatia, combinando logo o pequeno-almoço para as sete horas do dia seguinte: quínua e ovos mexidos com pão.

A descida de Mollepata ao Chuquicara e subida a Pallasca, ficam para sempre na memória, no olhar, nas pernas, no coração…

Os vinte e cinco degraus, esperam do outro lado do rio

A descida de Mollepata é um labirinto sem fim, que se precipita até ao rio

Duas horas de subida, diz esta andina tisnada

Pequenas flores destoam na paisagem dura

Olhar para trás

Vinte e cinco degraus depois

O vale do rio Chuquicara é de tal modo acentuado que dificilmente se consegue ver o fio de água correndo. E se na encosta em frente se conseguem identificar 24 curvas, que compõem os 25 “degraus” da escalada da estrada, deste lado, aos meus pés, apenas se vislumbram pedaços de caminho e curvas que parecem não ter continuidade e descerem aos pulos pela íngreme ravina. É estonteante e infindável a descida, e fico feliz por não ter de a percorrer em sentido inverso…
Creio que passei mais tempo parado, a tirar fotografias e admirar a impressionante paisagem, do que a percorrer os 25 degraus da encosta que, com excepção dos últimos dois ou três, foram mais suaves do que temi. Claro que a suavidade é relativa…pedalar em 1x3 ou 1x2, a 5 ou 6 km/h, era uma performance perfeitamente vitoriosa – e pensar que quando pedalava a 10 km/h, na Dempster highway, me sentia desalentado…
Com o fim da escada não chegou ao fim a subida. Agora a estrada prosseguia pela linha da encosta, em direcção a Pallasca, que fica no topo do próximo cerro.

Grupo de animado e ruidosos “colegiais”

No sopé da colina que antecede a povoação, deparo-me com um magote de miúdos que desatam em grande algazarra ao avistarem a bicicleta. São estudantes com cerca de 15 anos, que terminaram as aulas e marcham estrada fora, a caminho de casa. Todos querem fazer perguntas e saber coisas, numa excitação e comunicabilidade nem sempre usual por estas bandas, pois há locais em que as pessoas, qualquer que seja a idade, são extremamente fechadas e incomunicáveis. Um dos miúdos tem um pequeno atilho na mão e lembro-me de um truque que aprendi à lareira, nos tempos em que a electricidade ainda não tinha chegado à aldeia. Peço-lhe o atilho e, depois de dar uma série de voltas em torno do dedo esticado do miúdo, dou um leve puxão e o atilho solta-se com toda a facilidade. Uma salva de palmas, pedidos para repetir e lá vamos todos, subida arriba, uns comigo, outros com o Luís. E não sei de quem foi a boa ideia, mas daí a pouco empurravam, ao desafio, as duas bicicletas, para gáudio das pernas estafadas. Entrámos em Pallasca com grande ruído e aparato, só nos detendo na praça de armas, junto à desproporcionadamente grande igreja, do tempo da “colónia”, como dizem os miúdos.

Correndo, palrando, empurrando, brincando, como se fossemos todos amigos da rua

Íamos almoçar na povoação e sugeri ao Luís que oferecêssemos uma bebida aos miúdos. Comprámos uma pepsi de 3 litros, um par de copos de plástico e, pomo-nos a servir cola aos miúdos. No fim, já não era só a dúzia de miúdos que nos acompanhou, a beber, mas toda a miudagem que passava por perto. Alguns faziam uma cara de surpresa, como se nunca tivessem bebido – uma miúda abanava o copo e bebia em goles muito pequenos, provavelmente sem grande prazer. No fim, todos agradeciam e diziam que nós éramos pessoas muito boas…como é fácil ser generoso por estas bandas.
Com o fim do almoço terminou também a chuva e decidimos prosseguir para Quiroz, o próximo ponto do mapa. Havia duas rotas possíveis: pela cordilheira, passando por Cabañas; ou descendo de novo ao nosso já conhecido Chuquicara e prosseguir ao longo dele. Dizem-nos que a primeira opção é mais dura em termos de relevo mas tem povoações, contrariamente à segunda, onde não há nada nem ninguém, numa paisagem completamente árida, pelo vale do rio. Escolhemos o vale do rio, também para dar um pouco de folga às pernas…
Depois de atravessar alguns lodaçais da recente chuvada, a estrada regressa, finalmente, ao piso mais duro e a nova descida estonteante para o vale do Chuquicara. A paisagem muda rápida e drasticamente, desaparecendo qualquer vestígio de vegetação, de verde, de vida. As cores esbranquiçada, avermelhada e ocre, dominam por completo a paisagem. O vale afunila e afunda-se junto ao rio, que desaparece ruidosamente em curvas, falésias e encostas íngremes. Furo a meio da descida, com aquela paisagem dantesca como companhia, pois o Luís há muito que desapareceu na curva seguinte. Ao mudar a câmara-de-ar, tomo consciência da temperatura que o aro atinge, com a fricção constante dos travões. Os quilómetros seguintes são passados gerindo a contradição de querer descer velozmente, para que o Luís não fique eternamente, algures, à espera e porque a luz do dia vai escassear em breve, e descer devagar, para evitar novos furos. Quando a estrada toca finalmente o rio e permite folgar os travões, há dois ou três casebres da cor, textura e desolação da própria paisagem. O Luís espera-me junto a um deles, e seguimos juntos, à ilharga do rio, ao som do seu rugido, pedalando longe do mundo e de qualquer espécie de vida, embrenhando-nos no silêncio daquele vale de morte, desolação e ausência.

De volta ao vale do Chuquicara…

Parece que um cataclismo nos antecedeu

A estrada segue o rio e o seu desnível, anulando a resistência do forte vento contra. O piso é péssimo, de cascalho, terra e pó, e o atrelado saltita a cada buraco ou irregularidade do rípio. Receio por novo furo no atrelado mas, não tarda, furo à frente. É a primeira vez que tenho dois furos no mesmo dia. Escurece, estamos longe de Quiroz e desespero com mais esta contrariedade…Substituída a câmara, retomamos a marcha o mais depressa possível, o mais devagar recomendável. Lamento intimamente não tirar fotografias àquela morte universal, mas não quero retardar mais a marcha. Pouco adiante surge um túnel, não muito longo mas absolutamente escuro e com o mesmo piso medonho. Sem luz, não tarda muito perco a noção da localização, sinto a roda da frente resvalar e malho. Caio com a coxa esquerda em cima de uma qualquer pedra dura, talvez pontiaguda, mas com a adrenalina ao máximo, não sinto qualquer dor e retomo a marcha. Pedalamos para Quiroz. Não deve estar muito longe… entretanto a estrada surge enlameada. Como é só mesmo a estrada, percebe-se que andaram a regá-la. Só não percebo porque raio tinham de por tanta água, a ponto de enlamear o piso. Não tardou e lá vai de novo a roda da frente a atolar-se e resvalar na lama. E de novo acariciei o chão, ainda que desta vez a cama fosse fofa… Só desejava que o dia terminasse depressa. Pouco adiante surge um pequeno aglomerado de “casas” junto à estrada, com um grupo de rapazes e miúdos por perto. Mandam-nos parar, mas nem era necessário. Aquele aglomerado de construções chama-se “la Galgada” e eram praticamente todas da família Rosso, onde viviam já três gerações. Quiroz não existia, garantiram-nos. Era apenas uma ou duas barracas e nada mais. Se quiséssemos ficar por ali – e não éramos os primeiros ciclistas a fazê-lo – arranjava-se um espaço no “armazém da prata”, talvez mesmo um balde de água para cada um poder tomar um duche e alguma coisa para cenar… Apesar do ar desolador do local, parecia ser a única opção para um dia tão azíguo, pelo que aceitámos.

Pernoita em La Galgada, com a família Rosso, no armazem da prata

O decano da família Rosso varreu um pequeno espaço, no chão de terra poeirenta do armazém da prata, onde estendemos os colchões e os sacos-cama. Entretanto o filho Lenine conduzia-me a um beco do casebre ao lado e disponibilizava o balde de 20 litros de água para poder pelo menos refrescar-me. Por seu lado, a matriarca da família preparava algo para jantarmos: uma abundante sopa de massa, acompanhada com pipocas e chá – exactamente igual ao pequeno-almoço do dia seguinte e, presumo, ao almoço. Todos os dias seriam assim as refeições, para todos os elementos da família, desde a mais tenra idade… no fim, pediram-nos 13 soles (3€ e escassos cêntimos). Já tínhamos combinado o mínimo que lhes daríamos e mais que duplicamos a quantia pedida. Grande esmola, grande generosidade, mas ficaram muito agradecidos e despedimo-nos com sentida gratidão. Para trás ficava o armazém da prata, assim designado (por mim) por ali armazenarem sacos de minério rico em prata, que uma empresa mineira trazia da montanha e ali deixava à guarda da família Rosso, até perfazer quantidade suficiente para vir um camião grande – que não conseguia trilhar a estrada mais para montante do rio – e levar a riqueza para junto de outra maior. Também para trás, iam ficando os efeitos devastadores do El Niño, já lá vai uma década ou mais. Dizia-nos o Lenine ao jantar, que choveu torrencialmente durante vários dias, o caudal do rio subiu assustadoramente, devorando árvores, gado, casas e tudo o que encontrava, numa fúria diabólica. O açucar, hoje a 3,5 soles o quilo, custava 8 ou mais. E o mesmo acontecia com a massa e demais alimentos, quando os havia, pois as estradas foram totalmente destruídas e ficaram isolados do mundo durante meses…é inimaginável como se poderia sobreviver em condições ainda mais extremas que as actuais.

Ao longo do vale da morte,

O milagre da vida surge em escassos metros quadrados de terra…

Quiroz não existe mesmo para alem do mapa. Existir, até existe, numa placa de sinalização da estrada, mas reduz-se a uma ou duas casas. Uma delas, com fachada de azulejo, que lhe dava um ar inusitadamente novo, brilhante e totalmente “descontextualizada”, neste mundo de pó, terra, rocha e desolação, tinha laranjas e bananas à porta, para venda. Apesar do ar raquítico das bananas e verde das laranjas, decidimos degustá-las, pois os nossos mantimentos eram exíguos e as previsões sobre futuros abastecimentos, bastante pessimistas… Contrariando as aparências, ambos os frutos eram muito bons, para além do habitual preço de miséria…
A força da vida é incomensurável maior nesta terra do nada e da morte. Impressiona como nas margens do rio, em escassos metros quadrados de terra esquecidos pelos rochedos sem vida, crescem árvores de fruto, arbustos, ervas, por vezes mesmo flores. Basta desviar para lá um fluxo da água do Chuquicara e dá-se o milagre…




O que terá passado pela cabeça do “criador”, que fúria lhe terá dado, que quereria demonstrar com tanta desolação, tanta aridez, tanta imponência, tanta morte…? E que privilégio é sentir-se a única vida a fluir…

Das gargantas fechadas do vale, apenas se avista o céu azul, lá bem no alto, e as encostas rochosas das falésias que se erguem até o tocarem. Nada existe para além do colorido descolorido das montanhas; nada existe para além do ruído do Chuquicara; nada existe para além do estreito vale, onde apenas cabe o rio e a estrada, lado a lado. É uma prisão, um labirinto do qual não se sai e que não se sabe onde leva. São escassos os carros, autocarros ou pequenos camiões com que partilhamos a estrada. É abundante a imensidão infinita da desoladora paisagem…
Mas sabemos que aquele vale morto nos há-de conduzir a algo, a uma povoação que tem o mesmo nome do rio e que se apresenta com um ponto maior no mapa. Lá, em Chuquicara, a estrada há-de dividir-se: uma via seguirá para Trujillo e para a civilização, que todos nos recomendam; a outra inflectirá à esquerda e prosseguirá pelo coração da natureza morta, em direcção ao Cañon del Pato, através dos 40 ou 50 túneis sem luz, sem piso, sem sinais, sem vida.

Chuquicara é um balde de água a ferver, na tarde sufocante daquele caldeirão infernal

Não parece possível que Chuquicara seja aquele monte de casebres, de terra, pó e lata, que se estendem ao longo da estrada, fundidos e confundidos com a montanha. É verdade que, não fosse a chapa ondulada, ferrugenta, que cobre as casas, dificilmente se poderia conseguir melhor identidade paisagística… Há um restaurante e uma mercearia. Comemos, compramos qualquer coisa para levar, abastecemos de água, o Luís enche uma embalagem de óleo, para as correntes das bicicletas, numa oficina de camiões e continuamos a aventura, agora para a nascente do rio Santa, a caminho da Cordilheira Branca.

Vira o disco e toca o mesmo…não, agora é a subir e o piso voltou ao seu pior

Acabou-se a descida, acabaram-se as escassas dezenas de quilómetros de asfalto, acabou-se a fresquidão e sombra da manhã. Regressou a subida ao longo do rio, regressou o piso pior que nunca, regressou o calor abafado do vale. Continuava o silêncio cósmico, a agressiva desolação da paisagem, as montanhas fechadas, de rochas imponentes ou terra descolorida, num monocromatismo tão desolador quanto irresistível. O trânsito era escasso mas demolidor, pelas enormes quantidades de pó que levantava. Um jipe parou junto a nós. O condutor, de olhos injectados de sangue, perguntou-nos para onde íamos. Quando dissemos Huaraz, Cordilheira Branca, fez um trejeito com a cara e disse para não prosseguirmos, para irmos por Trujillo, que era a terceira vez que fazia este caminho demoniacamente belo mas o pó e os camiões que íamos apanhar ao longo de toda a estrada dariam cabo de nós. Mais os inúmeros túneis perigosos. Face ao nosso sorriso resignado e determinado, lá disse que se estivéssemos em muito boa forma, valia a pena fazer o caminho…Despedimo-nos e prosseguimos em sentidos opostos…

Não pode haver morte mais morte, que a morte dos que ali jazem. Até eu senti momentaneamente medo daquela morte…

Felizmente nem tudo era mau: o vento soprava favoravelmente, por vezes bastante forte. O Luís, que tem a tralha toda nos suportes traseiros, é como se pedalasse com uma vela. Eu, com o piso terrível, de cascalho e areia, sinto as maiores dificuldades desde Inuvik… a tracção é baixa, o atrelado teima em não seguir estritamente o rodado da bicicleta, resvalando para um ou outro lado, especialmente nas curvas, onde o piso é sempre pior e mais solto. É preciso cerrar os dentes e apontar à próxima curva…
Teremos de fazer campismo selvagem, pois não há qualquer povoado antes de Yuracmarca. Paramos junto a uma casa e o proprietário, sentado à porta, diz-nos que por vezes outros ciclistas acampam ali, junto à casa dele. Mas como ainda é meia tarde, decidimos prosseguir. Parece que “a três horas de caminho, em bicicleta” há um restaurante e mesmo fruta para venda. Não vai ser fácil, tanto mais que as estimativas que nos dão para as distâncias, são sempre optimistas…

Entrada para o inferno, para onde se entra morto e de onde se sai sem vida…

Entardece depressa e a estrada parece entrar numa zona mais fechada que nunca. Talvez tenha mesmo túneis, de má memória para mim, pois fiquei com a coxa esquerda um bocado contundida da queda de ontem… Nas encostas do vale vislumbram-se, de quando em vez, pequenas cavidades abertas na montanha: são acessos a minas, muitas delas inactivas. Mas numa dessas curvas que parece engolir a estrada e entrar terra adentro, surge um morto-vivo caminhando pela berma da estrada. É uma mancha completamente negra, onde apenas se distinguem dois olhos ausentes. Caminha depressa, apesar de deficiente, pois tem ambos os pés totalmente curvados para dentro – uma espécie de Charlie Chaplin ao contrário. Atrás segue outro, com ar mais jovem, apesar de igualmente envolto num manto de negridão. Caminham em silêncio e nem sei se responderam às “boas tardes”. São mineiros, que morrem vivendo no carvão. E escassas centenas de metros adiante, estão dois camiões com semi-reboque a carregar carvão. Impressionante é aqueles mastodontes estarem a ser carregados por dois homens a… carrinho de mão e à pazada! Ambos envoltos no pó negro do carvão, ambos curvados com a cara sobre o monte de carvão, ambos sem qualquer máscara ou protecção, pazada após pazada, carrinho de mão após carrinho de mão, para encher dois camiões com semi-reboque…homens esquecidos dos homens; “homens esquecidos de deus”; deus esquecidos dos seus homens… só penso no “regresso da casa dos mortos” e na abundância de morte em vida que vai desfilando em cada esquina, cada beco, cada cume, cada vale, dos Andes – e para além e aquém deles.

Antes dos túneis há pontes e labirintos que nos aprisionam

Um dos motoristas dos camiões diz-nos que estamos a cerca de meia hora do local que pretendemos. Teremos de passar uma série de túneis primeiro, alguns compridos, mas havemos de chegar. Já é lusco-fusco quando avisto o providencial parador. Um comedor à beira da estrada, com vários autocarros parados e uma vasta clientela enchendo por completo a sala. Em redor, diversas bancas vendem fruta variada, de uvas a maçãs, laranjas, mangas, papaias, abacates gigantes e mesmo guábas. O cheiro circundante é que é nauseabundo. A diminuta casa de banho não é suficiente para acolher dezenas de passageiros que saem dos autocarros, em viagens de longo curso, e se encostam ao que há, aliviando-se sem pudor.

Depois de várias manobras e alguma transpiração, parece que é este o caminho

Damos várias voltas ao local até elegermos o sítio menos mau para montar a tenda: fica encostada ao muro contíguo ao restaurante, a dois ou três metros da estrada… Claro que inicialmente, cada camião ou autocarro que passa parece vir projectar-se directamente contra a tenda, esmagando-nos sem apelo nem agravo. Mas com a frequência, vamo-nos habituando – excepto ao barulho ensurdecedor dos motores ou das incansáveis buzinas. Aos solavancos, lá se passa a noite, metade a dormir, metade a tentar adormecer…

Ali vive o Teófilo. Passa o rio numa “gaiola” suspensa de um cabo nas duas margens

Yuracmarca aparece no caminho, dezassete quilómetros depois do local onde pernoitámos. Tomamos o segundo pequeno-almoço e deixamos a desinteressante aldeia. O Cañon del Pato aproxima-se e, com ele, uma dura subida, antes de a estrada suavizar e entrar na zona mítica dos túneis. Serão 35, de diferentes dimensões, mas todos com as mesmas características: sem luz, com piso miserável, de uma só via, cavados na rocha bruta e à bruta, com paredes e tectos totalmente irregulares e poeirentos. Num deles há um camião parado a meio. A carga era demasiado alta e batia no tecto do túnel. Lá estavam, empoleirados, vários homens, tentando arrear carga e mudar bagagens para poderem prosseguir e deixarem prosseguir o trânsito que se ia acumulando, por entre os habituais buzinares.

No último troço da estrada, sucedem-se 35 túneis. A aventura inesquecível, irreal, assustadora às vezes, sentida até aos ossos, até ao tutano, até à raiz dos cabelos…





Apesar das lanternas e do cuidado, este foi um troço de grande tenção e adrenalina, inesquecível pela rudeza e agressividade da paisagem, pela imponência da natureza, pela singularidade da estrada, pela sequência infinda de túneis…ainda sinto o ressoar dos motores e das buzinas nos túneis, para além da travagem in-extremis de um anormal que parece não me ter visto…
Ao sexto dia, e com excepção dos escassos quilómetros entre Quiroz e Chuquicara, voltei a sentir o suave rolar no asfalto… Foram seis dias intensos, pelas paisagens mais áridas, mais desoladas, mais descoloridas, mais imponentes, de que tenho memória, com as subidas e descidas mais marcantes e inesquecíveis que percorri, pelas aldeias mais pobres e mais inóspitas que conheci, várias pertencentes ao grupo classificado como de “extrema pobreza”, como nos referiram as enfermeiras em Mollepacta. Foram seis dias que não cabem em muitos meses de vida comum… seis dias que deixam o corpo e os sentidos a transbordar.

À saída de Caraz, 2011

Caraz não foi mais que um ponto de repouso e os nevados da Cordilheira Branca raramente se avistam, escondidos que estão por trás dos montes que circundam o vale do rio Santa. Mas à medida que pedalamos para sul, a caminho de Huaraz, vislumbra-se um ou outro pico agudo e imaculado e brilhante.
Huaraz parece viver do turismo e não mostrou atractivos próprios – apenas serve de ponto de paragem e de partida para os diversos destinos de natureza. São caminhadas de diferentes durações e dificuldades; excursões aos nevados mais famosos e às lagoas mais vistosas; expedições guiadas para escalar a segunda maior cordilheira do mundo, depois dos Himalais, reunindo vinte picos acima dos seis mil metros e o ponto mais elevado do continente americano: o Huascarán, com 6768 metros, que dá nome ao Parque Nacional e inspirou o “tocando o vazio”, um filme baseado na história real de dois alpinistas que vieram escalar o Huascarán e que teve um desenrolar dramático, apesar do (inevitável) final feliz…
Contrariando as indicações da polícia de turismo, decidimos fazer a caminhada à “laguna Churup” sem guia. Interpelámos um jovem taxista e perguntámos-lhe quanto cobrava para nos levar a Pitec, o ponto de partida para a caminhada. Hesitou, pois nunca lá tinha ido e não conhecia o caminho, sabendo apenas que o piso era muito mau… Sugeriu 30 pesos, e acabámos por concordar com 2 soles por quilómetro… Teve de perguntar várias vezes qual o caminho, desde a saída de Huaraz, o que me deixou um bocado apreensivo. Mas devagar, de pedra em pedra, curva em curva, pergunta em pergunta, sempre subindo, com a música aos berros, lá chegámos a Pitec. Vinte quilómetros, dava quarenta soles. Perguntámos-lhe se não queria vir buscar-nos ao fim do dia, mas disse que não compensava voltar… se soubesse, poderia ter trazido comida e esperar-nos, ou mesmo visitar a laguna, que dizem ser muito bonita e que desconhece, mas não tem comida nem bebida. O guarda do parque disse que vendiam bolachas e sumos numa cabana em frente e rematámos o negócio de ida e volta por 90 soles…

Caminhada para a “laguna” Churup

Olhem para mim, lá porque sou pequena, posso ser bela…

A caminhada começa cerca dos 3800 metros e leva-nos acima dos 4500, na lagoa. O percurso é fácil, excepto pelo efeito altitude, que se faz sentir nos corpos menos habituados, e a parte final, onde é necessário recorrer a cabos de aço para escalar uma sequência de rochas… Cordilheira fora, pelo single-treck que serpenteia a encosta, com o céu azul e os picos nevados em redor, vamos sentindo afastar-se a vida quotidiana e ser tomados pela força irresistível e cativante do Deus da montanha. Quanto mais acima, mais só, mais sentido, mais exclusivo, mais espiritual. Quanto mais alto se está, mais alto se quer chegar. Cada passo, pede outro passo; cada ângulo novo, pede um novo olhar, até que a lagoa surge, fria, translúcida, encravada na base do pico Churup, onde este se mira e admira, nos seus cerca de 5500 metros.


Huaraz, laguna Churup

Os raios de sol aquecem a pedra fria e sabe bem senti-la, cálida, sob as costas. O repouso em silêncio e os pensamentos de cada um, não são importunados nem pelo Churup altaneiro. Alguns lancham, outros tocam viola, mas a maioria felizmente bebe apenas o silêncio do altar…