quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Pacífico - San Francisco a San Diego

O Pacífico – de San Francisco a San Diego

Custa deixar San Francisco… já adiei a partida duas vezes, mas hoje é a valer.
À saída da pousada de juventude de Fort Manson, éramos quatro a montar a tralha nas bicicletas. A Sally, uma sexagenária seca, alta, ágil e com um sorriso permanente no olhar e no rosto, era a mais comunicativa do grupo e foi com ela que entabulei conversa. Faz parte de um grupo de 12, dois ou três australianos, um inglês e os demais americanos dos quatro cantos do país. Estavam a pedalar juntos desde Seatle, sempre ao longo da costa, numa viagem organizada, mas com poucas regras… pedalam livremente ao longo do dia, sós ou em grupo, cada um ao seu ritmo, reunindo-se ao fim do dia no parque de campismo previamente combinado. O jantar e o pequeno-almoço são as duas refeições conjuntas, rodando diariamente a dupla de cozinheiros.

Pousada de Fort Manson

Tal como eu, vão seguir a estrada nº1 para sul, até San Diego, onde esperam chegar dentro de duas semanas e meia. Até Monterey fiz praticamente parte do grupo…
Deixei Fort Manson pela manhã, com a luz suave do sol dourando os enormes armazéns bege de telhados vermelho vivo, frente ao mar azul intenso e ladeados pelos intermináveis relvados verdes, fervilhando de gente a fazer desporto.
Alonguei-me no caminho junto ao longo da baia… um último olhar ao “palace of fine arts” que, à primeira vista e à distância, uma semana atrás me pareceu a cúpula de uma enorme mesquita. Uma foto no parque do presídio, onde algumas mesas já estavam repletas de comida para alguma comemoração ou simples convívio capaz de se prolongar por todo o dia. Ao lado, uma jovem de traços orientais deve ter trocado o escritório ou a biblioteca por uma mesa discreta no jardim, onde trabalha concentradamente no portátil.

El Presidio

Um par de pelicanos castanhos voam em círculo sob a marina e de repente um deles parece despenhar-se, mergulhando a pique na água, de onde emerge a engolir algum peixe com aparente esforço.

Pelicano em mergulho

For Point, mesmo debaixo do tabuleiro da Golden Gate, é um edifício de tijolos vermelhos e muros grossos, que domina a entrada na baia de San Francisco. Do último piso, o olhar escorre pela ampla paisagem em redor, de Alcatraz a Sousalito, acabando preso às velas coloridas de pequenos veleiros que vagueiam sem pressa na baia.
Subo uma última vez à Golden Gate e percorro meio tabuleiro… durante a semana apenas uma das faixas laterais está acessível a peões e bicicletas. Apesar de ser manhã, e sexta-feira, é preciso pedalar devagar, parar, pedir licença e avançar devagarinho por entre os passeantes que, às dezenas, percorrem o tabuleiro suspenso sobe as águas verdes da baia.

Golden (Red) Gate

A Ocean Beach está fria e cinzenta. São quilómetros de praia apenas partilhada pelas gaivotas, que parecem dormitar numa pata enquanto a outra descansa, e dezenas de surfistas, negros e elegantes como corvos marinhos nos fatos de neoprene e pranchas coloridas. Algumas brigadas de voluntários apanham o lixo para enormes sacos de plástico. É muito comum ver grupos de voluntários ao longo das estradas em tarefas de limpeza…
Frente ao mar as casas são pequenas, dispersas, frequentemente mais baixas do que as árvores que as rodeiam e com mais cores que o arco-íris.
Bastam duas dezenas de quilómetros para a “grande cidade” desaparecer, dando lugar a uma paisagem completamente diferente, árida e selvagem.

Devils Slide

A estrada nº1 segue a linha de costa, praticamente sempre colada ao mar. Em locais de maior concentração urbana e com mais trânsito, é vedado o acesso a bicicletas mas surgem invariavelmente estradas alternativas, por vezes construídas exclusivamente para esse fim…Podem assumir três características distintas: “Bike route”, em que a estrada “normal” é partilhada pelas bicicletas; “Bike lane”, em que a estrada tem uma faixa delimitada e exclusiva para as bicicletas; e “Bike path ou trail”, que é mesmo uma via fisicamente autónoma e distinta. A sinalização é impecável e mesmo um despistado como eu, com um vulgar mapa das estradas na bagagem, não senti dificuldades encontrar o caminho correcto – mais “desvio”, menos pergunta...

As praias sucedem-se, mais pequenas do que grandes, cavadas em falésias escarpadas, de areias claras e vegetação rasteira a cobrir as dunas suaves. As ondas pequenas, de águas verdes e cristas brancas, trazem os surfistas de negro empoleirados precariamente até ao areal. Praticamente não há veraneantes, pois apesar do céu completamente azul e sol brilhante, a temperatura mal dá para tirar o corta-vento.


Pescadero

Reservas e parques naturais vão intercalando com as praias. São severamente protegidos, só se pode andar pelos passeios delimitados na orla, com bancos e mesas para pic-nic, têm informação "interpretativa" sobre a fauna e flora, avisos por todo lado a alertar para a fragilidade do ecossistema, desde as estrelas-do-mar à flora, das aves às dunas e mesmo rochas, e recantos encantadores onde surpreendi um jovem de joelho na areia, cabeça erguida e uma pequena caixa na mão que estendia à rapariga embevecida...


Half Moon Bay

As povoações são ralas e com escassas centenas de habitantes. Por vezes surge o que parece ser uma quinta em estado de semi-abandono e outras procurando fazer a diferença através da produção biológica, venda directa, imaginação e muita simpatia... Vejo e sinto ao longo do percurso, outros percursos noutras latitudes e longitudes. Os mesmos tons de outono, a mesma vegetação dunar, as mesmas escarpas, ravinas, areais. A linguagem da terra, da natureza, dos elementos afinal é tão semelhante... acredito que se falasse com os agricultores locais, ouviria as mesmas queixas, os mesmos problemas, os mesmos anseios, as mesmas dificuldades.


"Organic farm"

Raramente se avistam casas de férias e quando surgem, estão discretamente integradas na paisagem. São largas dezenas de kms de uma beleza selvagem, agressiva, rústica, quase inóspita, onde o cheiro a mar, o marulhar das ondas em suave baloiço, apelam à modorra num qualquer dos bancos espaçadamente colocados ao longo da linha de costa, junto à ciclovia/passeio marítimo de toda a Half Monn Bay.


Half Moon Bay


Pumpkins...

Após Santa Cruz, ou mais precisamente Capitola, uma pequena aldeia colorida, nascida no mar e a viver apenas do turismo, tem inicio a mais impressionante zona de cultivo de vegetais que pudesse imaginar. Nas palavras de uma professora reformada, com ar de charlatã, que conheci em Monterey, será a maior área contígua de produção de vegetais do mundo.


Capitola


Campismo - Bikers on tour

Seja ou não a maior, são dezenas de kms de culturas, primeiro praticamente só morangos, depois couves, alfaces, cenouras e mais uma ou outra espécie que não consigo identificar. Tudo geometricamente disposto, extensões que confundem o olhar…
O reflexo do sol nos intermináveis plásticos que cobrem a terra à espera que os morangos despontem, por vezes confunde-se com o próprio oceano. Os tractores, de diversos formatos e alfaias distintas, movem-se numa cadência constante até desaparecerem na linha do horizonte…lavram, endireitam o solo, abrem regos rectilíneos, pulverizam. Há cheiros intensos e diversos no ar… os menos desagradáveis são os restos das culturas em decomposição, que integrarão o próximo ciclo produtivo. Paro e provo dois ou três morangos a medo. Não são deliciosos...apenas morangos.


Vai uma para o jantar?

Ranchos intermináveis de homens e mulheres acocorados lado a lado, chapéus de abas largas na cabeça e lenços - quando não sacos de plástico - em torno da cara e pescoço, joelhos no chão e mãos ágeis deslizando velozmente de morango para morango, de alface para alface, de couve para couve. Corta e passa para trás. Outra mão pega, limpa algumas folhas e coloca no tapete rolante onde dezenas se alinham a limpar, embalar e carregar nos camiões que esperam em fila. A fábrica veio ao campo... Os sotaques que se ouvem, a música e as notícias que se desprendem dos rádios, que silenciam os homens e mulheres, são invariavelmente hispânicos. Parecem soar tristes, como os olhos negros na tez morena e cabelos negros… raramente vi um sorriso e nunca uma gargalhada.

Monterey vai despontando lentamente por entre o nevoeiro denso e pastoso, do outro lado da longa baia. Na verdade a cidade parece viver de braços estendidos para a frente marítima, para a baia de águas verdes e transparentes, onde as focas e lobos-marinhos brincam, nadam ou lutam com tal graciosidade que mais parecem estar a representar. No pontão de construção rude, há pescadores de todas as idades empoleirados em qualquer beco, esperando que algum peixe solidário se deixe ir no engodo, para gáudio exuberante do miúdo de tronco nu, que maneja a cana incessantemente.


Monterey - pontão

Os pelicanos castanhos disputam as rochas aos corvos marinhos, às gaivotas e mesmo a alguma foca em tempo de sesta. Parece aquele jogo das cadeiras, em que há sempre uma pessoa a mais… entardece devagar e a luz do sol vai-se alongando em reflexos dourados, projectando nas águas da baia as cores e formas mansas da vida no porto.


Monterey - porto


Monterey - porto

Do porto de pesca pequenas embarcações coloridas continuam a partir, regressando com pequenas quantidades de pescado, especialmente marisco, servido logo ali, nos restaurantes caros que sucederam aos velhos armazéns.


...pois claro

Cannery Row está repleta de Jonh Steinbeck. Dos hotéis, aos cafés; dos gift shops aos restaurantes; da praça, aos cocktails. Mesmo assim, há lugar para discretos placards históricos sobre o passado mais distante. E lá está um lembrando que os “baleeiros portugueses vinham no século XVIII pescar baleias à baia de Monterey. Matavam-nas, extraíam-lhes a gordura e faziam o óleo no local, devolvendo os restos ao mar. O óleo era utilizado essencialmente para iluminação, mas com a descoberta do petróleo, a actividade deixou de ser rentável”. E outro ilustrando a intensa história da industria da conserva de sardinhas, do surgimento ao apogeu, durante a II guerra, e a extinção. E diversos sobre a vinda de Hollywood a Monterey e a Cannary Row, destacando um filme de Fritz Lang, numa das primeiras representações de Merlyn Monroe.


Monterey

A ciclovia e o passeio marítimo prosseguem colados ao mar. Há parques de recreio, mesas para pic-nics, locais específicos para observação da abundante fauna marítima, com painéis (in)formativos sobre as espécies ou a história de cada local, bancos defronte ao mar, quase continuamente.
O cheiro frente a Bird Rock é nauseabundo. Santuário de aves migratórias que ali permaneceram durante largas semanas a nidificar e procriar sem “arredar pé”, agora são as focas e lobos-marinhos que disputam cada centímetro. E o resultado da dupla presença é o “famoso” guanaco, cujo cheiro até faz comichão na garganta e ardor nos olhos.


Bird Rock

Até Carmel, a costa selvagem, rochosa e árida, contracena com extensos campos de golfe e habitação luxuosa, sempre perdida na vasta mancha florestal.

De Carmel a Point Sur

De Carmel a Point Sur

A estrada afasta-se repentinamente da costa, perfurando o vale sinuoso de colinas suaves que crescem até tocarem as nuvens baixas. Deixa de se ver e ouvir o imenso oceano de chumbo e somos invadidos pelo aroma húmido de Outono de Los Padres National Forest. O parque de campismo Pfiffer Big Sur, é a porta de entrada, mas também o coração, de Los Padres. As copas das árvores enormes e densas, roubam a luz do sol e trazem a noite serôdia. Os troncos, ora rectilíneos apontados ao céu, ora contorcidos em formas requintadas, parecem brincar em misteriosos labirintos. As folhas em tons de fim de vida e formas despreocupadas, matizam o solo de sombras e reflexos suaves. Os escassos raios de luz que logram transpor a floresta, projectam sombras fantasmagóricas, clamando por duendes e bruxas imaginários.


Big Sur - Pfeiffer Campground

Ocupo o último lugar disponível no espaço reservado a baikers e hikers e o casal de alemães que chegou depois, tem de pedir permissão para se instalar num lugar “normal”. Na Califórnia parece haver uma grande convergência de vontades e interesses em torno da utilização da bicicleta. Não sei quem nasceu primeiro, se o ovo, se a galinha, mas a enorme comunidade de ciclistas, com inúmeras organizações, associações e realização de eventos, tem como contrapartida uma vasta rede de ciclovias, sinalização abundante e diversas vantagens para os ciclistas. Uma delas é a existência de locais específicos e tarifas reduzidas nos parques de campismo públicos. Os preços normais rondam os 25 a 30 dólares, e 5 ou 6 dólares para ciclistas…

Big Sur


Big Sur

Até Santa Bárbara, o nevoeiro cerrado e a chuva miudinha fundem-se e confundem-se... roubam a floresta e a montanha, deixando adivinhá-las pelo cheiro e pelos constantes declives da estrada; roubam o mar, as ondas e as ravinas, deixando pressenti-las no incessante marulhar da água revolta; roubam as aves, as focas e os elefantes marinhos, deixando ouvi-los nos gemidos afogados das lutas ou brincadeiras.

Elefantes em luta...


...e juniores literalmente na engorda

Santa Barbara parece-me representar uma viragem no mapa da costa da califórnia...a cidade gira em torno da State Street, uma longa rua ladeada de palmeiras, casas baixas e pequenas, de formas curvas, terraços, pátios com entradas em arcos ovais. Toda a vida parece convergir para esta rua...há nomes em espanhol, italiano, francês e mesmo inglês.

Santa Barbara


Santa Barbara

As lojas são pequenas, coloridas e diversificadas, desde a geladaria, às fotocópias; do teatro, ao cinema e à ópera; do macdonald, à steack house; da radioshack à cartier; da discoteca à livraria e às antiguidades. A população é colorida e democrática...scaters, bikers, esfarrapados, pedintes, estudantes, friks, turistas, excursionistas, emproados, reformados. A State Street leva-nos até ao porto e ao museu marítimo. Parte do museu estende-se pelo próprio porto, numa sequência de barcos com memória, que contam a história da cidade, da pesca e do país: os baleeiros, o táxi, o transporte local de mercadorias, a pesca do marisco, os barcos patrulha...


Santa Barbara - porto

O Bill não quer saber da história nem desses barcos que para aí estão só a ocupar espaço...é pescador, vive da pesca, ama a pesca e passa os dias no mar. Está a regressar de lançar as redes (ou armadilhas - o meu inglês não alcança...) e à tarde vai recolher a pescaria com a mulher. Pesca essencialmente marisco, que tem boa saída na cidade - dois ou três restaurantes locais ficam-lhe com toda a pescaria. O canzarrão assiste indiferente à conversa...

Santa Barbara - porto

Muitos dias tem um dia…
Acordei sarapantado com o telefone a gritar no silêncio húmido da tenda. Dois bons amigos quiseram partilhar comigo o almoço de Domingo no Stop do Bairro… apesar de não me dizerem a ementa, conheço-a de cor e, talvez pela primeira vez desde que deixei a ibéria, salivei saudades e senti o travo amargo na garganta… por pouco tempo, pois quando tomava o meu banal pequeno-almoço – duas sandes mistas e uma terceira com o redescoberto delicioso sabor da infância: nutella e banana – recebo uma mensagem. Desta vez estavam em minha casa a beber cardhu à minha saúde! E eu não resisti, juntei-me a eles para partilhar as pequenas estórias do dia-a-dia, os golos falhados e frangos sofridos na jogatana dos Domingos de manhã, combinar o próximo filme, cartada ou jantarada… despedimo-nos no silêncio de um último trago à saúde, ao Ushuaia e à fraterna amizade, que não tem “longe nem distância”. Eles regressaram às suas casas, depois de me regarem as plantas e arejarem a casa; eu terminei o pequeno-almoço sob um céu de chumbo e água, filtrada pelas folhas douradas de Outono do enorme plátano sob o qual pernoitei, em Leo Carrillo State Beach.
Apesar da hora vespertina, as bermas da estrada já estão repletas de carros estacionados de onde saem surfistas de todas as idades, prancha debaixo do braço e passo apressado para a crista da onda.

Leo Carrillo beach

De Leo Carrillo até Santa Mónica, não há praia que não tenha ondas e não há onda que não leve na crista vários surfistas de negro, dançando em precário equilíbrio até invariavelmente se esparramar na curva espumosa da onda e regressar ao ponto de partida.
Reflicto se faço uma incursão rápida ao “centro” de Los Angeles ou prossigo ao longo da costa, quando me apercebo que não tenho travão de trás… um dos calços, já completamente gasto, deve ter-se solto. Como os da frente não estão muito melhor, a prioridade é encontrar uma loja aberta...pois parece que é domingo.
Apesar da estrada ser predominantemente plana, com a chuva e sem travão, as paragens nos semáforos são tensas e já tive de recorrer ao método primário do pé no pneu.
Em Malibu, pressinto pela abundância de lojas, escolas e demais aparatos dedicados ao surf, um dos paraísos surfistas, um estrondo enorme faz-me dar uma guinada tensa na Dempster. No semáforo à minha frente um mercedes e um jipe chocaram com violência, em piões e capotanço. Alguém deve ter ignorado o sinal vermelho...
Prossegui com alguma tensão. Aquele acidente fez-me mal aos nervos. Mesmo um tipo como eu, que "raramente pensa", especialmente no perigo, não conseguia afastar o estrondo da cabeça e os carros a rodopiarem na estrada...
As bermas da estrada são grandes mas estão invariavelmente ocupadas por carros de surfistas estacionados, o que me obriga a pedalar no limite da faixa de rodagem e da berma. De repente sai um tipo disparado do meio de duas carrinhas estacionadas e atravessa-se na minha frente. Nem tive tempo de accionar os travões que não tinha e deu-se o inevitável: afaguei a estrada com delicadeza e suavidade, por entre mil desculpas do tipo, um alforge a deslizar e um susto...
Estava tomada a decisão! Iria para sul, ao longo da costa e LA - Downtown e hollywod - ficam para a viagem de regresso.

Marvin Braude Bike trail

Pouco depois tem início a Marvin Braude Bike Trail, uma ciclovia com dezenas de Kms ao longo do areal quando não mesmo praia adentro, por onde circulam centenas de ciclistas e skaters de todas as idades e ritmos. Há dezenas de redes de vólei de praia. Numas jogam pares, noutras, quadras, noutras é ao molho. Numas limitam-se a tentar passar a bola para o campo adversário, noutras joga-se aos três toques, com remates suspensos no alto e bloco organizado. Numas jogam barrigudos e carecas, noutras elegantes louras e noutras, todas as cores. Ao lado da pista de bicicletas há outra para peões. Uns passam a correr, outros a caminhar; uns de fones nos ouvidos, outros em grupo a cavaquear. Parecia que em Santa Monica
toda a gente tinha vindo para a praia praticar desporto...e senti um formigueiro nas pernas e na sola dos pés, com vontade de largar a bicicleta e correr na areia molhada.

Precisava de travões e era domingo. Deixei o Marvin Braude bike trail e procurei uma rua interior. Estava na main street a consultar o mapa e quando levanto o olhar deparo-me com a Bike Attack mesmo na esquina ao meu lado. Está aberta e repõem calços novos nos travões...sei que os suportes da frente onde encaixam os alforges estão partidos e decido substituí-los também...a procissão ainda vai no ar e mais tarde ou mais cedo, acabarão por ceder completamente. Combinamos meia hora para a reparação e vou passear pela Main Street. E descubro outra Santa Mónica, apenas duas ou três ruas afastadas da praia. Casas pequenas, traça antiga e repleta de gente a passear pela rua, nas pastelarias, na conversa...Ao lado do museu há mais movimento: é o "farmers market". Uma praça pequena repleta de tendas com pequenas vendas de produtos agrícolas. Dos frutos aos legumes; dos vegetais às flores; do mel aos doces; do pão aos bolos e frutos secos; dos sabões aos cremes de beleza; da tasca de comes e bebes aos sumos naturais feitos na hora; do quiosque dos "farmers", com livros de receitas, especificações dos produtos, referências e moradas dos associados, ao grupo de cordas que animava a feira alternando música country com erudita...E o local repleto de gente de mais cores que as do arco-íris.
E de repente estava sentado num degrau da escada, a saborear um prato de comida "nova" e apaladada, a assistir a um concerto e senti-me transportado para há 30 ou mais anos, na feira dos 14 de cada mês, na aldeia vizinha do castelo. Vi regatear o preço dos cabritos, dos borregos e dos leitões. Vi o "propagandista" a anunciar não por 5 000, nem por 4 000, nem 3 000, mas apenas 2 000 escudos um enxoval completo, mais um par de botas. E antes que algum maluco se chegasse à frente e estragasse a jogada, baixava apressadamente para 1000 escudos apenas!! por entre os protestos ensaiados da mulher/ajudante. E senti o aroma da tasca dos frangos e o sabor da mini, naquele dia de festa, caso a venda dos leitões ou dos cabritos tivesse ido a bom porto e carteira estivesse menos tisnada que o habitual... E estava tudo aqui e lá, no sofisticado e caro "farmers market" e na popular, rude, biológica e barata feira dos 14...
De regresso à Bike Attack esperava-me uma surpresa desagradável. Afinal a própria suspensão da frente estava partida ou partiu-se quando o mecânico tirou os apoios dos alforges para substituir. Terá sido do "deslize" da manhã...? Uma suspensão em segunda mão, foi a solução para a bolsa depauperada.
De volta à Marvin Braude, procurava o parque de campismo do meu mapa, em Docwiller State Beach. Certo é que o campismo não apareceu...havia um parque mas só para caravanas. Estava farto daquele dia cheio de boas e más surpresas e decidi que acamparia no primeiro local sofrível que encontrasse e que não dissesse explicitamente que era proibido acampar. E entre o mar e a pista do aeroporto de Los Angeles, num quadrado de relva viçosa, baloiços e bancos de recreio, montei a tenda mais uma vez sob a chuva e o nevoeiro.

Campismo selvagem em LA

Entre a expectativa de ser acordado a qualquer altura por algum polícia zeloso, o marulhar constante das ondas do mar, o desnível do solo e o ruído ensurdecedor dos aviões a descolarem aos pares por cima da minha cabeça, esperei que a noite levasse os dias que o dia teve, nem todos bons, nem todos maus, mas todos singulares.

Passar o porto de LA e chegar a Long Beach de bicicleta não foi uma tarefa amigável! Os camiões de muitas toneladas, muitos reboques e semi-reboques, muitos eixos e muitas rodas, por estradas em obras, vias sem acesso a bicicletas, e becos e ruelas que deseguam numa doca do porto, sem saída, faziam a adrenalina disparar e o suor pingar...
Long beach não é tão longa assim e a meio da tarde estava praticamente deserta. Na verdade, com excepção das três ilhotas à ilharga, não vislumbrei nenhuma singularidade na praia. O mesmo areal grande e plano de Santa Monica; a invariável ciclovia e passeio pedestre, palmeiras e os prédios frente à praia, de longe os maiores de toda a costa.


long Beach

Queria chegar cedo ao parque de campismo de Bolsa Chica para aproveitar o escasso sol e secar o equipamento de campismo, que há quase uma semana não seca completamente. Quando chego ao parque, e apesar das indicações do mapa, mais uma vez me deparo com a impossibilidade de acampar. A mesma estória de só as auto-caravanas serem admitidas. Mostro o mapa dos "State Parks" e a indicação de "tent sites", mas, como muito bem sabia, não a conseguiria demover...

Huntington

Regressei lixado à estrada, pedalando apressadamente para percorrer os cerca de trinta kms que me separavam de Newport Beach, o próximo campismo privado, onde adivinhava que iria pagar uma pipa de massa... Agora as praias sucedem-se e as povoações são contíguas. Chego a Newport Beach já ao entardecer. O parque de campismo tem uma localização excelente, mesmo na margem de um braço do mar que entra terra adentro. As instalações são de luxo e o preço a condizer...
Durante a noite desencadeia-se uma tempestade que continua todo o dia... trovoadas sucessivas, chuva a potes, vento forte. Esperei até às 11h a ver se amainava mas não havia sinais de cedência... apenas oscilações de humor. Vesti a minha melhor paciência, calcei a melhor persistência que encontrei, tomei uma dose dupla de resignação e uma tripla de desafio e atirei-me de cabeça para a frente. Por vezes tinha de fechar os olhos, pois a chuva parecia fazer feridas. Por vezes tinha quase de parar e passar com a bicicleta à mão em locais da estrada alagados pela água. Por vezes parava debaixo de uma varanda ou toldo para evitar uma rajada maior de vento. E uma vez um tipo em mangas de camisa, um copo de café numa mão e um bolo na outra e um ar feliz no olhar, diz-me: se não fosse estas tempestades, como poderíamos apreciar verdadeiramente o lindo sol o ano inteiro? E eu acenei-lhe que sim, que era mesmo isso que eu queria - sol o ano inteiro!! pelo menos o próximo ano!!
Cheguei a San Clement State Beach, tudo escorria água, incluindo as nuvens que pareciam rotas.
Numa aberta, que é como quem diz, chuva menos intensa, montei a tenda numa pequena elevação debaixo de um pinheiro - parecia uma autêntica ilha. Na verdade os lugares para acampar estavam inundados por água, que corria em riachos por todo o parque...enfiei-me na tenda e nem saboreei as duas ou três sanduíches do jantar.

Carlsbad

Depois da tempestade, a bonança vem, mas devagarinho...
Tinha pensado completar os cento e poucos quilómetros até San Diego e pernoitar aí num dos Hostals. Mas o fim do dia pôs-se bonito, com o sol a espreitar, a temperatura a subir e o mar com aquela cor de chumbo que parece afundar tudo com ele. Parei no parque de San Elijo ainda não eram três horas e apesar de os bikers só poderem fazer o check-in depois das 4h30, as simpáticas empregadas deixaram-me instalar. Expliquei-lhes que tinha tudo molhado, depois de uma semana sempre com mau tempo, em especial nos dois últimos dias e só faltou irem ajudar-me a montar o estaminé. Sim, porque quando estendi tudo o que estava molhado, eram as árvores, a vedação, a mesa e bancos, tudo colorido com roupa bafienta, tenda, saco cama, colchão, almofada, calçado, mochilas...pouco menos que um campo de futebol!!

San Elijo

Em Cardif está um monumento ao surfista, quem vestiram de Bob Marley. Parei para tirar uma foto e para um tipo ao meu lado que me pergunta se quero saber a estória desta estátua. E prossegue: aqui, em Cardif, somos os melhores surfistas do país. Esta estátua foi feita em Nova Yorque e, como vês, a posição do surfista é de "aprendiz" - os profissionais posicionam-se assim sobre a prancha, exemplificava. Por isso todos odiamos a estátua e todas as semanas fazem alguma travessura à estátua. Desta vez está vestida de Bob Marley; há umas semanas fizeram um tubarão que colocaram assim e parecia que o tubarão estava a comer a estátua! Aqueles tipos de Nova York são todos aprendizes, estás a ver...".


Cardif

Até San Diego ainda tomei café com um professor universitário, que me pediu desculpa pelo mau tempo. Habitualmente só chove por aqui a partir de Fevereiro e com pouca intensidade, só "light showers". E agora esta tempestade em Outubro...é inédito, I'm sorry, I'm sorry".

San Diego
Não encontrei em San Diego nada de singular. Praia e mais praia. Surfistas por todo o lado. Ciclovias a condizer. A cidade velha toda recuperada e bem preservada, mas exclusivamente turistica. Na Hostal em que fiquei, em Newport beach, encontrei um hambiente singular..e partilhei o "quarto" com o "terrível" estereotipo americano...estória que vou passar, pois agora, apesar da chuva parecer estar de volta, vou para o México, que deve distar escassas quatro dezenas de quilómetros...

San Diego - Old Town

San Diego - Lapso (meu)?

San Diego - Newport Beach
Adiós gringos, asta lueg.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A caminho de San Francisco

Prólogo

Meus amigos, está a ser cada vez mais difícil manter o ritmo...do Blog, não da viagem!! Os erros devem aumentar, os detalhes diminuirem, as fotos serem menos seleccionadas... enfim, a "qualidade da coisa" é capaz de se ressentir! mas a "janela é para manter aberta!! A propósito, face a alguns pedidos e perguntas sobre o assunto, é suposto falar para a antena 1, quinzenalmente às 4as feiras, entre as 6 e as 7 da manhã... para os que sofrem de insónias enão têm melhor ocupação, podem sempre ouvir umas banalidades...

A caminho de San Francisco
Os mais de cem kms que separam o Echo Sumit de Folsom, fariam as delícias de qualquer amantes do ciclismo…são praticamente sempre a descer! Recordo apenas uma ou duas subidas que dão nas vistas – ou nas pernas.
Até Pollock Pines, uma pequena povoação na “fronteira” da El Dorado National Forest, a estrada esgueira-se, solitária e silenciosa, pelo vale cavado no vértice das montanhas abruptas, na sombra, por vezes gelada, da floresta densa. Praticamente não há casas e o único vestígio da presença humana é mesmo a estrada.
Em Pallok Pines vejo um anúncio indicando “corte de cabelo – $16”. Estava um calor tórrido e, pelos auto-retratos, dá para perceber que pouparia no champô…Entrei e dei de chofre com o John Wayne pendurado na parede! Barba e cabelo eram $22!! A forma de rentabilizar o preço, que me pareceu exorbitante, era aplicar-lhe um corte radical, e assim foi…no mesmo dia, em Folsom, vi anúncios de corte de cabelo a $9,9…
À saída da barbearia devo ter-me deparado com a figura mais extraordinária ou louca, não só desta aventura mas da minha vida…lamentavelmente não fixei o nome. Um velhote franzino, que parecia ligado à corrente eléctrica de alta tensão, olhou-me com um olhar de uma vivacidade desumana, paralisante, e fez a pergunta habitual… comecei a responder mas a voz dele sobrepôs-se à minha, num timbre agudo, firme e automático, impossível de parar ou sequer ser interrompido. Dissertava sobre a maior bicicleta do mundo, creio que construída por belgas, que transporta trinta e tal pessoas e é recorde mundial, constando do Guinness…eu nem abria a boca, pois as palavras saiam-lhe em torrentes, atropelando-se – pelo menos para o meu fraco inglês… Na sua euforia, disse-me “espera aí, eu tenho isto tudo aqui no carro”. Abre o porta-bagagem e vem de lá com um dossier que começa a folhear. São fotos, artigos de jornal, por vezes parecem mesmo ser “esboços técnicos” de “coisas estranhas”. Folheia o dossier em frenesim, para trás e para a frente, até encontrar o que me quer mostrar – a famosa maior bicicleta do mundo. Tem vários desenhos, perspectivas, alçados, medidas, grandes planos de detalhes, etc.. Explica-me apressadamente como funciona…e passa de imediato para um projecto dele: uma auto-caravana…anfíbia! Tem múltiplas fotos dele e um grupo de amigos em passeios, um dos quais ao Canadá. E vê-se mesmo a caravana com rodas mas um “casco” tipo barco, metade em terra e metade no rio… Pergunto-lhe se é professor, cientista, ou o que faz na vida e ele diz: “tudo, tudo isso e mais. Comecei as loucuras quando tinha 19 anos…e mostra-me outra foto tirada no memorial onde estão esculpidas na rocha as “cabeças” dos mais memoráveis presidentes dos EUA. Diz-me: “vês esta foto, a placa com os nomes!? Ninguém consegue tirar esta foto deste ângulo…tive de escalar as estátuas para a tirar! Como era proibido, paguei 600$ de multa!! 600$, vê bem, quando tinha 19 anos!!!”. E eu, aparvalhado, sem perceber se estava perante o maior louco e charlatão da América, ou um pequeno génio, escutava sem capacidade de reacção, ou até de compreensão…Acredito que era mesmo um homem invulgar…Despedimo-nos e, quando começo a pedalar, pergunta-me se não tenho reflector atrás na bicicleta, que é perigoso, pois os americanos são doidos…
Prossigo pela Pony Express Road, e passo junto a Sportsman, um entreposto mítico na ligação Este-Oeste. As casas são discretas e incrustadas na floresta, as sombras frondosas, o trânsito diminuto e lento. Pedalo devagar para sorver o misticismo que paira no ar. Sucede-lhe a Carson Road, também ela em homenagem a Kit Carson, o mesmo dos livros de cowboys aos quadradinhos, um dos meus preferidos há mais de 30 anos…
As montanhas há muito desceram à terra, os pinheiros, cedros e outras árvores de grande porte, vão dando lugar a pomares, primeiro, e vinhas, depois. Castanheiros, nogueiras, pessegueiros, pereiras, ameixeiras… tudo enfileirado, geometricamente alinhado, densamente povoado mas de pequeno porte.
No topo de uma colina surge um edifício grande, à esquerda da estrada. Há muito movimento de carros e pessoas: é o “Boa Vista Market”, assim mesmo. É um mercado essencialmente de fruta e derivados gurmet: doces, bolos, compotas, sumos…
Os preços da fruta são metade dos praticados nos supermercados e os alperces, peras e uvas que comprei, eram deliciosos…Na caixa perguntei a origem do nome e a empregada confirmou o que suspeitava: era um nome português porque foi construído por uma família de emigrantes portugueses, proprietários da quinta em frente, onde inicialmente vendiam produtos da quinta…
Suspeito que a Lava Cap Wineries e o Machado, candidato a xerife, também terão uma pontinha de Camões no sotaque.
Gostaria de ter pernoitado em Placerville, que me pareceu uma vila pacata e pitoresca, de pequenos edifícios de madeira, com muita gente a animar as ruas ladeadas de pequenas lojas, cafés, galerias. Mas o parque local não aceita campistas, apenas auto-caravanas. Prossegui irritado em direcção a Folsom, na expectativa de que tivesse um parque de campismo…
Poderia estar a pedalar no Alentejo interior…a bolota caída dos carvalhos frondosos esmaga-se na berma da estrada estreita. Numa cerca de arame enferrujado, com ar decadente, três ou quatro ovelhas partilham o espaço com um cavalo. As silvas vão trepando pelo casebre de madeira abandonado, com o telhado semi-desabado. Uma mão-cheia de bois pastam os restos de feno seco e ralo que resiste ao calor do verão.
Para Folsom ainda falta quase uma vintena de quilómetros e o sol começa a desaparecer por entre os carvalhos, deixando a estrada na penumbra…Pedalo a toda a brida, sem ver, ou sequer olhar, sem cheirar, sem sentir por onde passo, apenas em busca do ponto de chegada…exactamente o contrário do que gosto. E de repente, num entroncamento da estrada, surge um café-bar (já não se designa saloon…). Seria o ideal pernoitar por ali. Contíguo ao café havia um pequeno parque de recreio, com ar pouco cuidado e ainda menos utilizado, onde o filho dos donos do café, depois de conferenciar com o pai, me conduz e sugere que fique. O pequeno rectângulo de onde brotam tufos irregulares de relva, é perfeito…e o mega hambúrguer, três canecas e intensa simpatia familiar que respirei, valeram qualquer Placerville…


Rescue - Campismo familiar
Folsom cresce na margem do American River e não se percebe onde acaba, pois até Sacramento, a capital da Califórnia, as zonas comerciais e residenciais sucedem-se numa malha urbana constante. O centro histórico está completamente esventrado por bulldozers que abrem valas profundas nas ruas.
Durante vários anos (2002-2007?) a vila foi distinguida como “bike-friendly”….São inúmeras as ciclovias, mapas, lojas de bicicletas e praticantes…Na verdade, desde Reno-Sparks, que se nota uma alteração brutal, com centenas de praticantes e vias dedicadas às bicicletas.
Até Sacramento naveguei sem mapa, limitando-me a seguir as ciclovias em direcção ao sol poente. Mas não cheguei sem que um prego perfurasse a roda de trás…
Como o único parque de campismo fica já fora da cidade, em Sacramento – Oeste, atravessei a cidade sem parar. Talvez volte amanhã…

Regresso a Sacramento. Pelo menos quero passear pela cidade velha… O meu sentimento em relação às cidades que vou percorrendo é cada vez mais claro: invejo os parques e espaços verdes; sinto curiosidade e aprecio as zonas antigas, invariavelmente as “velhas cidades do oeste”, com duas ou três ruas perpendiculares, os edifícios coloridos, de madeira o mais das vezes, com os passeios de madeira elevados e varandas sobressaídas: barbearia, hotel, salon, mercearia e pouco mais…; e fico pouco impressionado com os novos edifícios, mais ou menos vidrados, espelhados e altos…Sacramento não foi excepção…


Sacramento - old town

Sacramento

A caminho de Davis prossigo pela "bike route" que ladeia a estrada 80. Há vários ciclistas num e noutro sentido. Acompanho um cinquentenário com quem vou tagarelando e de quem recebo sugestões para o caminho a seguir até ao pacífico…sugere que prossiga em direcção ao lago Berryessa e depois para sudoeste, por Napa e Sonora, até chegar à nº 1, em Point Reys. É um pouco mais a norte e um caminho mais longo do que pensava fazer mas, face ao “it’s a hard road but a scenic road, you will enjoy it”, não ia recusar pela segunda vez seguir uma “scenic road”…ainda estou com a “lonliest road” atravessada!

O parque de campismo nas margens do Putah Creek é enorme, está praticamente deserto e parece ser um santuário/reserva de aves. Ao entardecer, os patos passam em bandos alinhados em V, como mandam as leis da física; as garças brancas parecem ser residentes; os pavões pavoneiam-se discretamente pelo meio das árvores, um qualquer pássaro cinzento metálico, cuja genealogia desconheço por completo, mergulha na água e regressa ao tronco da árvore vezes sem conta; por cima da minha cabeça inúmeros outros pássaros, uns com o pescoço vermelho, outros negros com umas bolas brancas nas asas quando abertas, fazem uma grande algazarra…


Putah Creek

O céu é das águias; o rio é dos patos, partilhado por uma ou outra garça branca; as árvores são de pássaros de várias cores, tamanhos e timbres; a estrada é minha…
Depois da vasta planície que se estende de Sacramento a Winters, pensei que até ao pacífico seria um passeio. Nada mais errado…as colinas vão-se sucedendo suavemente, mas sempre a subir. Nas encostas multicolores, o amarelo-torrado do feno em fim de vida, contrasta com as manchas densas dos carvalhos que trazem sombra à estrada. O lago Berryessa é uma pequena barragem na montanha, com os seus braços de águas verdes envolvendo os pequenos vales ressequidos.

Lake Berryessa

No fim de uma qualquer descida surge o primeiro vinhedo a perder de vista, geométrico, numerado, as videiras todas exactamente iguais, com a mesma altura, a mesma dimensão, creio que o mesmo número de cachos, talvez mesmo igual número de uvas por cacho...
No posto de turismo de Napa, o empregado parece ficar desapontado quando lhe digo que pretendo apenas um mapa da cidade e outro da região…já tinha engatilhado o discurso com todas as adegas, o respectivo circuito e operadores.


Napa - Vinhedos

De Napa a Sonoma sucedem-se os vinhedos e as adegas, algumas com casas sumptuosas e enormes. A estrada, em obras, praticamente não tem bermas e tenho de disputar os escassos centímetros necessários, aos carros. Foi o percurso com mais “adrenalina”e cheguei a Petaluma fatigado física e mentalmente…pouco faltou para desmaiar quando a empregada do parque de campismo me pediu $45 por uma noite…

De Petaluma a Point Reys Station é uma zona rural, pobre, remota. Os campos parecem descuidados, abandonados mesmo; um par de burros e outro de cavalos partilham as ervas ressequidas; as casas rareiam e quando surgem têm uma aparência modesta, quase decadente.

Petaluma-Point Reys

As colinas foram crescendo e formaram uma cadeia montanhosa. É a última barreira que me separa do mar, com que sonho há três dias.
A temperatura baixa abruptamente, a humidade vê-se, sente-se, é táctil e cai em gotas de arco-íris pelas folhas da floresta, agora densa e sumptuosa…o Pacífico vem assim ao meu encontro, fresco e de mansinho.

Point Reys

Point Reys Station parece ser uma aldeia feliz, depois de ter dado a volta ao destino. A decadência natural e morte anunciada pelo encerramento da linha e partida do último comboio, foi fintada pelos homens. A agricultura biológica, a sustentabilidade, a fusão entre alimentos naturais e gastronomia, os pequenos ateliers de arte e artesanato, a preservação e recuperação urbana e o “regresso à terra”, encheram de vida e cor as pequenas ruas, num convite silencioso à preguiça…
Point Reys trás consigo a estrada nº1, com quem tenho encontro marcado, que acompanha a costa do pacífico praticamente desde a fronteira com o Canadá até ao México, e com quem tenho encontro marcado.

Point Reys - Stinson Beach

Rumo agora a sul e a estrada mais parece uma ciclovia, tal o número de ciclistas com que me cruzo. Em Stinson Beach, poucas dezenas de kms antes de San Francisco, pergunto ao único veraneante das proximidades se há algum parque de campismo perto. Pergunta-me de onde sou e quando digo “Portugal”, desata num relato interminável sobre as suas próprias férias, há mais de 25 anos, em Portugal. Pergunta-me por Salema, na costa alentejana, e os olhos brilham-lhe. Uma praia deserta, onde só havia uma tasca, em que o marido servia à mesa e a mulher era a cozinheira. A massa de peixe era tão salgada que não a conseguiram comer, perante o ar incrédulo dos donos do restaurante. Repetia a pergunta se Salema ainda era assim ou se já estava cheia de hotéis e restaurantes. Depois falou-me de San Francisco. Que eu ia encontrar Lisboa em San Francisco, com tróleis, eléctricos, muitas colinas. Não lhe disse que em Lisboa já só restam as colinas…De repente parou de falar e perguntou-me o que é que eu queria saber. “Ah, parque de campismo!? Há um muito bom mas é de onde vens – em Olema…A única hipótese agora é fazeres campismo selvagem na praia, talvez na próxima, em Miura, seja melhor…é mais pequena e mais discreta. Há 30 anos era legal, agora não sei, mas experimentas e logo vês!!”. E foi-se embora de repente, praia fora… No meu mapa havia um parque de campismo poucos kms adiante – o deep ravine campground. O problema é que só era acessível com pré-marcação… A estrada subia falésia acima e lá do alto avisto a meus pés meia dúzia de telhados lá em baixo, junto ao mar, no sopé da ravina. Poucos metros depois surge a cancela de acesso ao parque. Estava fechada e com uma série de escritos sobre proibições e multas. Parei olhando para as alternativas, pesando os prós e contras, quando pára um carro. Sai um tipo e abre o cadeado de código e pergunta-me se também vou descer? Digo-lhe que estava a pensar nisso mas não tenho reserva feita… acrescenta que não há praticamente ninguém lá em baixo e decido avançar. Não só não conheço qualquer alternativa de alojamento perto como a localização do parque é irresistível. O acesso ao parque é por uma estrada estreita e que desce abruptamente até ao mar. O parque são meia dúzia de bungalows encravados nas falésias, mesmo em cima do mar, e literalmente mais seis lugares para tendas de campismo, dispersos na vegetação. Não há luz eléctrica nem duche, apenas uma casa de banho. No primeiro bungalow estão três pessoas sentadas no alpendre e trocamos cumprimentos. Explico de novo que não tenho marcação mas não há mais parques nas imediações e vai-se fazendo tarde…no fundo procuro cumplicidade. Uma das mulheres começa por me dizer que só está um lugar de campismo ocupado e que o parque era suposto ter fechado no dia anterior (30 de Setembro). E é então que olha para o marido e diz que posso ficar na “cabin” deles, pois vão-se embora hoje, lá pelas 8 horas, mas pagaram até amanhã…fico atrapalhado com a oferta, mas aceito.

Deep Ravine CG

O passeio pelo parque e a localização dos lugares de campismo fazem-me mudar de ideias…não resisto a acampar no lugar mais distante, à ilharga de um pinheiro com inúmeros braços que crescem quase junto ao solo, a poucos metros da falésia onde o mar rebenta com estrondo. Lá longe, para sul, por cima das nuvens ou do nevoeiro de fim do dia, vislumbro uma ponta metálica que só pode ser a Golden gate…

Deep Ravine CG

Acordo muito cedo…estou com a adrenalina toda e quero chegar rapidamente a San Francisco. As gaivotas e os corvos parecem tolhidos pelo frio e escondidos no nevoeiro cerrado, que por vezes parece mesmo chuva. A estrada sobe e desce, contornando as falésias onde o mar se ouve mais do que se vê. Os poucos carros que vão para norte e levam invariavelmente pranchas de surf no tejadilho. Começam a passar alguns ciclistas em ritmo acelerado. Após Muir Beach a estrada sobe acentuadamente e passam por mim, em ambos os sentidos, dezenas de ciclistas…afinal é sábado! Apesar de estar às portas de San Francisco, a paisagem é completamente rural, com várias pequenas quintas, invariavelmente com a indicação de exploração “organic”…

Muir Beach

Sousalito é a porta de entrada em San Francisco, e parece viver só do turismo, especialmente do cicloturismo… A Golden Gate pode ser atravessada a pé e de bicicleta, sendo o Golden Gate Bike Tour um dos circuitos mais populares da cidade, com prospectos, operadores e alugueres de bicicletas “por todo o lado”. Tem partida de San Francisco, principalmente da zona do porto e baia, e término em Sousalito, o outro extremo da ponte, de onde se pode apanhar o barco de regresso…

Marcha em Sousalito

Aos fins-de-semana, os dois passeios laterais da ponte estão abertos: um exclusivamente para bicicletas e o outro para peões.
Ainda era manhã e o nevoeiro denso apenas deixava ver parte do tabuleiro e dos cabos de suspensão da ponte, o que lhe emprestava um ar misterioso e incerto. Parecia verdadeiramente suspensa no espaço, conduzindo-nos ao vazio, ao infinito. Estava parado à entrada do tabuleiro, com dezenas de bicicletas a passarem em ambos os sentidos, quando um tipo me perguntou para onde ia. Saiu-me “Argentina”. E ele com olhar atento diz-me “não, isso é de onde tu és”. “Perguntei-te para onde vais”. E eu insisti: “I am from Portugal and I am going to Argentina”. Aparece uma miúda do grupo e ele olha para ela com um ar divertido e diz-lhe: “este tipo diz que vai para a Argentina”. E ela tem exactamente a mesma reacção dele: “Ele percebeu mal a pergunta… He is from Argentina”. E o outro, rindo-se, diz-lhe: “foi exactamente o que pensei, mas não, vai mesmo para a Argentina”. E lá seguimos juntos a conversar sobre bicicletas e alojamento em San Francisco, suspensos naquela parcela de metal vermelho que desaparecia suavemente no nevoeiro.

Golden Gate
Não consigo imaginar melhor forma de entrar em San Francisco…É como se aquele nevoeiro viesse de mansinho arrumar o passado, ordenar o quadro onde estavam escritos os lugares, as pessoas, as estradas, os montes e vales, o frio e o calor, a fadiga, e criar um espaço enorme para preencher com o que San Francisco sabe que tem para oferecer aos visitantes.

San Francisco

A Golden Gate entrega-nos directamente a enorme parque verde, com caminhos pedestre e ciclovias, umas vezes separadas outras partilhadas. Tomei o lado esquerdo, em direcção à marina e Fort Manson, sempre à espera que a ciclovia terminasse. Mas em San Francisco as ciclovias nunca terminam – na pior das hipóteses, prosseguem na rua paralela – e os parques verdes parece suceder o mesmo…

San Francisco

Estórias em San Francisco
Não vou alongar-me com relatos sobre a semana que passei em San Francisco…apenas umas pinceladas gerais e dois ou três episódios que achei singulares
Se pudesse escolher uma só coisa para levar comigo de San Francisco para Lisboa, escolhia os parques verdes…Grandes ou pequenos; só relvados, cuidadosamente ajardinado e tratados ou sem estado “selvagem”; com bancos e mesas para pic-nic ou recintos desportivos; cicláveis ou apenas acessíveis a peões; todos invariavelmente com casas de banho e, acima de tudo, repletos de gente de todas as idades, condição, tamanho e peso, muitos a fazerem algum tipo de desporto. No local mais inverosímil, podemo-nos deparar com um ou um grupo de “orientais”, normalmente pela manhã, a fazerem os seus exercícios lentos, pausados, suaves, de uma tranquilidade contagiante…

Festival Árabe


Golden Gate Parque

Se pudesse escolher uma segunda coisa, pois seriam as ciclovias…provavelmente San Francisco tem mais colinas que Lisboa – e garanto que tem ruas com inclinação muito superior às ruas de Lisboa. Ainda assim, não deve haver nenhum local da cidade que não seja acessível de bicla. E se há imensos ciclistas a pedalar por desporto, há incomparavelmente mais que o fazem como meio de locomoção…Sentia-me um verdadeiro caracol nas ciclovias. Homens e mulheres passavam por mim num ritmo que eu só com esforço acompanharia.


Parque de estacionamento

Porto de pesca

Porto de pesca

Porto de pesca

Se pudesse escolher uma terceira coisa, seria a vida da rua. No dia em que cheguei, numa qualquer praça da cidade onde fui dar por acaso, estava a decorrer o festival de cultura árabe. No Golden Gate parque, estava a decorrer um festival musical em quatro palcos simultaneamente, oferecido por um magnata multimilionário – parece que ofereceu um cheque de um milhão de dólares para a realização do evento – que incluía, entre dezenas de outros músicos, Patti Smith, Elvis Costello, Joan Baez. No dia seguinte, em Fort Manson decorria um mega encontro/manifestação e espectáculo musical em defesa de medidas mais eficazes na pesquisa e combate à sida. E o festival no Golden Gate parque, continuava. Todas as quartas, na Levi’s plaza, o SFJazz apresentava uma banda de jazz, das 12 às 13h30. Tudo isto de livre acesso, claro. Porque a pagar, nem imagino…Arcade Fire, na 3ª feira.

San Francisco

San Francisco

San Francisco
Se pudesse, continuava a escolher…e escolhia as cidades que há dentro da cidade…a Chinatown pela singularidade, colorido, diversidade, chinesices. Fillmore pelo Jazz. Mission, pelos murais, pelo sotaque, a língua, os cheiros. Pelo México. Fort Manson até Fort Point, pelos parques e a baia. …….. pelo porto, pelos barcos, pelos armazéns, pelos tascos, pela noite e pelo dia. Civic Center, pelas praças, pelos edifícios monumentais, pela praça das Nações Unidas, especialmente às Quartas e Domingos – dias do “farmer’s market” – pelo Yerba Buena garden e edifícios contíguos, pelo SFMOMA.

Mission
Se pudesse escolher, podia muito bem escolher San Francisco…
Se pudesse escolher, escolhia almoçar num burger king junto à Market Street. Estava sentado numa mesa perto da entrada e aproxima-se de mim uma mulher idosa, razoavelmente bem vestida e pergunta-me se pode levar os dois guardanapos que estão no tabuleiro (o 3º estava na mão). Digo para levar um, pois preciso do outro, mas ela pega nos dois e diz que preciso dos guardanapos para me limpar porque tenho comida para comer e vai-se embora com os dois…

Se pudesse escolher, estava parado pela manhã num semáforo do embarcadero, ao lado de um carro com dois ocupantes e o vidro aberto. O passageiro pergunta-me de onde sou e respondo “Portugal”. Ele diz-me: “Oh, Portugal! Very good country. You made lots of progress in last years. You legalize important things. Very clever, very clever…Have a good one!” e lá foi embora no sinal verde…
Se pudesse escolher, tinha comprado uns ténis, largado a bicicleta e corrido a cidade toda, tal a vontade que sentia cada vez que passavam por mim, fossem oito da manhã, ou dez da noite, nos parques ou nas ruas, planas ou inclinadas, gord@s ou magr@s, nov@s ou velh@os, velozes ou lentos, sós ou em grupo.
Se pudesse escolher, talvez escolhesse San Francisco…